Se tivéssemos a nosso alcance a versão filistéia da história de Sansão
e Dalila, seguramente ele não nos apareceria como a vítima das
artimanhas perversas de uma mulherzinha intrépida, conforme nos
apresenta a narrativa bíblica, mas como o arquétipo do ogro quase
invencível, possuidor de um segredo no qual reside sua força, e cujas
maldades são finalmente vingadas graças à astúcia de uma mulher que
tece uma trama ardilosa para atrair o vilão até descobrir a resposta
do segredo de sua invulnerabilidade.
No tempo dos juizes e dos reis de Israel dominava um rigor quase tedioso na administração das leis. Aqueles que proferiam as sentenças ostentavam uma gravidade tão inflexível que custa crer que um
personagem como Sansão, envolvido em disputas pessoais, em aventuras amorosas e em pequenas fanfarronices, conseguisse se destacar em outra coisa que não fossem desavenças tribais. Contrário à imagem de um digno representante dos tribunais, tudo indica que Sansão somente obedecia a seus impulsos e, sem a menor dúvida, fazia justiça com as próprias mãos.
Desvendando o Mito
Muito mais congruente é a figura de um brutamontes arbitrário, que incendeia os trigais logo antes da colheita, que destrói vinhedos e olivais; um prepotente que transita da libertinagem amorosa à
condição de matador de trinta homens, a princípio, e depois de outros mil — com a única ajuda de uma queixada de burro — por razões que não nada tinham a ver com patriotismo, justiça ou altruísmo, mas
somente porque se sentira ofendido. Exceto a indicação de que foi eleito por Deus, não há fatos que atestem sua condição de juiz consciencioso nos tribunais. Na Bíblia só se encontram os dados referentes à sua força sobre-humana, porém nenhum juízo que avalize sua autoridade.
O caprichoso Sansão do Livro dos juizes não concebe atos grandiosos nem realiza façanhas à altura de heróis análogos à sua condição superior. Tampouco se destaca por demonstrações de razão ou inteligência, mas se afama, sim, por sua instintiva condescendência e por sua brusquidão.
Não há coerência entre o aviso sobrenatural, anterior ao seu nascimento, e seu posterior desempenho
como contendedor musculoso que atravessa a vida cometendo impropérios até morrer na apoteose de seu vigor recobrado.
Em Dalila, ao contrário, reside o mistério. Ela é a depositária de uma astúcia mais apreciada no mundo antigo que a batalha frontal; também é ela que, possuidora de habilidades intelectuais que combinam sagacidade, destreza para se safar de problemas, senso de oportunidade e atenção vigilante, triunfa sobre o rude Sansão ao arrancar-lhe o segredo de sua ousadia.
O episódio, todavia, é descrito de forma tal a atrair a simpatia para o vilão que, impunemente, roubava
e assassinava os filisteus. Assim, em vez de acentuar o sentido de justiça que ele mesmo deveria demonstrar na condição de rei de Israel, o autor do texto sagrado relativiza seus abusos e diminui o provável significado libertador de Dalila: o de verdadeira heroína ante o inspirador do legendário ogro, o monstro ou mago que as lendas tornaram abominável em razão dos traços repulsivos de seu poder.
E é aí que reside o atrativo da única mulher que, na literatura popular ou sagrada, domina e submete astuciosamente uma força devastadora a partir de sua parte mais íntima, onde se oculta o segredo de sua superioridade sobre os demais.
Não deixa de ser revelador que tanto na literatura épica como na mitologia apareçam unicamente
homens dispostos a vencer uma sucessão de obstáculos mágicos até derrotar o maligno no local mais resguardado, justamente onde permanece a chave de seu poder; neste caso, os cabelos que Dalila
finalmente faz cortar graças ao fato de que Sansão, além de tudo o mais, ignorava até que ponto era ele também vulnerável às armadilhas da sedução amorosa.
Se o relato proviesse de algum narrador filisteu, talvez a versão de verdugo e vítima fosse bem diferente. A lista de desmandos praticados por Sansão não condiz com a imagem do legendário herói
bonachão que cai na armadilha preparada por uma prostituta que, mediante uma série de engodos, o conduz à humilhação e depois à morte.
Dalila e o Despertar do Poder Feminino
Não é absurda a possibilidade oposta, ou seja, a de uma mulher que está disposta a tudo, inclusive a morrer, no intuito de castigar uma ofensa grave que foi cometida pelo vilão. Contudo em vez de destacar o significado libertador de quem, sem mais armas que sua destreza, se atreveu com o inimigo mais temido a fim de vingar o resultado de suas crueldades, magnificou-se a imagem de um escolhido de Deus que, para reparar a perda de seus olhos e aos gritos de “Morra eu com os filisteus!” derrubou as duas colunas que sustentavam o teto do edifício no qual se encontravam cerca de três mil pessoas, entre príncipes e gente comum do povo inimigo, motivo pelo qual se diz que foram muitos mais os que Sansão levou consigo ao morrer do que os que matou enquanto gozava de liberdade.
Sansão e Dalila
Pela ausência de escrúpulos e por sua natureza aventureira, Sansão contrasta com a figura forçada de uma Dalila que, aparentemente, o atraiçoa por dinheiro, como se o gigante musculoso só granjeasse simpatias a seu favor e não tivesse buscado na vida outra coisa que fazer o bem e distribuir a justiça. Como bem observou J. G. Frazer1, a simpatia do ouvinte recai sobre o personagem vencido porque
ele aparece revestido das características amáveis de patriota e defensor de seu povo.
Ainda que velhacarias, seus feitos são apresentados como aventuras maravilhosas de um herói que só desperta uma admiração compassiva. Dalila exerce o papel de carrasco, uma desalmada em busca de poder, amante falsa e ainda por cima prostituta, a causadora de todas as calamidades que recaem sobre um Sansão quase indefeso, quase idílico, exposto às artimanhas que o abateriam
depois de atingi-lo em seu ponto mais sagrado.
De sua boca saem a primeira, a segunda e a terceira provas de legendária ingenuidade até se render da quarta vez, quando finalmente revela a verdade. Tanto na mitologia como nos contos de fadas e ogros
repete-se essa deliciosa dualidade: ser ao mesmo tempo o personagem mais temível e o mais propenso a revelar a melhor maneira de ser destruído.
A força de sansão
Protagonista de uma inocência quase infantil, Sansão contraria sua condição de governador de Israel durante vinte anos. Diz primeiro a Dalila, no calor de seus abraços, que, se o atassem com um feixe de sete fibras frescas, que ainda não estivesse seco, perderia sua força e seria como um homem comum; quando os filisteus caíram sobre ele na alcova e o amarraram, o herói se libertou com um único
puxão. Da segunda vez, disse a Dalila que se o amarrassem com cordas novas, perderia sua força e seria como todos os demais; outra vez seus inimigos se puseram à espreita, aguardando o grito da mulher e ele rompeu como se fossem um fio as cordas que lhe cingiam os braços.
Uma vez mais se apresentou a iludida Dalila, e Sansão respondeu-lhe que, caso tecesse sete mechas de seus cabelos com a urdidura de um tear e as prendesse com um pino, ele se enfraqueceria e se tornaria
igual aos outros homens. Outra vez confirmada a falsidade de sua resposta, Dalila redargüiu: “Como dizes que me amas se não está comigo o teu coração?”
Aborrecido com tantas discussões, o forçudo cedeu à astúcia da mulher e confessou que nunca passara navalha por sua cabeça, porque estava consagrado a Deus desde antes de seu nascimento. Ela pressentiu que desta vez era a verdade, que era em seus cabelos que se ocultava o segredo e novamente chamou os príncipes filisteus.
Sansão
Dalila fez com que Sansão adormecesse em seus joelhos e então fez entrar o homem que cortou rente as sete tranças de sua cabeça, fazendo com que ele se debilitasse e logo se lhe desaparecesse a força. Ao grito de “Os filisteus vêm sobre ti, Sansão!”, ele despertou convencido de que, tal como das outras vezes, saltaria sobre seus pretensos captores e os derrotaria; mas descobriu, com grande pesar, que a força do Senhor o havia abandonado.
Humilhado, os filisteus arrancaram-lhe os olhos, levaram-no acorrentado a Gaza e o prenderam, deixando-o a girar a pedra de um moinho no cárcere sem perceber que sua cabeleira recomeçava a
crescer lentamente e, com ela, também sua força. Seus captores se divertiam, esquecidos de que em seus cabelos o gigante levava a chave de sua vingança.
Dalila
Dalila é o instrumento de uma derrota: cumpre o prometido e desaparece da lenda. Resta dela a sombra da sedução enganosa e, nas entrelinhas, a certeza de que os papéis relevantes na história dependem das versões que prevalecem das atuações dos seus personagens. É provável que em Dalila resida o antecedente vingativo da mulher humilhada, uma parente literária de Ulisses, célebre por sua sagacidade e possuidora de uma engenhosidade que lhe rendia mais vitórias que suas armas.
É possível também, caso subsistisse uma versão filistéia, que se tivesse tratado de uma mulher valente que se atrevera a enfrentar o monstro que assolava seu povo, despojando-o e cometendo tantos crimes a ponto de exasperá-los e fazê-los recorrer ao mais antigo e seguro meio para derrotar o mais forte: o delírio amoroso.
Texto extraído do livro
Mulheres, Mitos e Deusas
o feminino através dos tempos
Martha Robles
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