A fim de percorrer o Quarto Caminho, antes devemos nos preparar um pouco, preparar a bagagem… Também ajuda ter pelo menos algum conhecimento de ciência, filosofia e religião, embora o apego a formas religiosas sem a compreensão de sua essência acabe atrapalhando.
Se conhecemos pouco, se tivermos lido e pensando pouco, será difícil falar de ideias. Deve ser dito que existe uma regra geral para todos. No intuito de tratar com seriedade o Quarto Caminho, precisamos de desilusão, primeiro com nós mesmos — ou seja, com nossas habilidades — e, depois, com todos os velhos caminhos.
Desilusão
Não poderemos perceber o que esse ensinamento tem de mais valioso se não estivermos desiludidos com nossos próprios esforços e com o fato de nossa busca estar sendo infrutífera. O cientista deve estar desiludido com sua ciência, o religioso com sua religião, o filósofo com sua a filosofia, e assim por diante.
Mas devemos compreender o que isso significa. Dizer, por exemplo, que o religioso deve se desiludir com a religião não significa que ele deva perder a fé. Significa que deva se “desiludir” apenas com a instrução e a metodologia, ao perceber que a instrução religiosa não é suficiente para ele e que não vai levá-lo a parte alguma.
Todo ensinamento religioso consiste em duas partes — a visível e a oculta. Desiludir-se com a religião significa desiludir-se com o visível e sentir, ao mesmo tempo, a necessidade de descobrir e de conhecer a parte oculta. Desiludir-se com a ciência não significa perder o interesse na busca do conhecimento. Significa convencer-se de que o método científico, tal como é entendido, não só tem utilidade limitada como costuma levar a teorias absurdas e auto contraditórias e, ao se convencer disso, começar a procurar um método melhor.
Velho caminho
Desapontar-se com a filosofia significa estar convencido de que a filosofia comum é apenas — como diz o provérbio russo — passar de um copo vazio para outro e aceitar sem sequer sabemos o que a filosofia significa, embora a verdadeira filosofia possa e deva existir. Não importa o que costumávamos fazer antes, não importa o que costumava atrair nosso interesse antes — apenas quando chegarmos a esse estado de desilusão é que estaremos prontos para adentrar o Quarto Caminho.
Se ainda acreditamos que nosso velho caminho pode nos levar a algum lugar, ou que ainda não experimentamos todos os caminhos, ou ainda se pensarmos que conseguiremos encontrar ou de fazer alguma coisa por conta própria, isso significa que não estamos prontos para a tarefa. Contudo, isso não significa que o Quarto Caminho exige que abdiquemos a tudo o que estamos acostumados a fazer. Isso é totalmente desnecessário.
Em geral, é até melhor que a pessoa continue a ser como sempre foi. Mas deve perceber que isso é apenas uma tarefa, ou um hábito, ou uma necessidade. Não há e não pode haver qualquer escolha das pessoas que entram em contato com os caminhos, inclusive o Quarto Caminho. Em outras palavras, ninguém nos seleciona.
Nós nos selecionamos, em parte por acaso, em parte por termos certa fome. Quem não tem essa fome não pode receber ajuda do acaso. E quem tem muita fome às vezes pode topar com o começo do caminho, apesar de uma série de circunstâncias desfavoráveis. Mas, além da fome, a pessoa já deve ter adquirido certo conhecimento, o qual lhe permitirá discernir o caminho. O Quarto Caminho é mais difícil ainda.
A fim de discernir a valorizar corretamente o Quarto Caminho, devemos ter pensado e sentido e já devemos ter passado, na verdade, pela desilusão com muitas coisas. Talvez não tenhamos trilhado os caminhos do faquir, do monge e do yogue, mas pelo menos deveríamos conhecê-los, avaliá-los e ter decidido que não são para nós.
Não é necessário levar isso literalmente nem termos avaliado e rejeitado os outros caminhos, mas os resultados dessa desilusão precisam estar em nós, a fim de nos ajudar a identificar o Quarto Caminho. Do contrário, poderemos estar do lado dele sem sequer percebê-lo.
Liberdade Interior
Tudo se resume a estarmos prontos para sacrificar nossa liberdade autocentrada. Todos lutamos, consciente e inconscientemente, pela liberdade, ou melhor, pelo que imaginamos que seja liberdade. E é isso que, mais que qualquer outra coisa, nos impede de conquistar a verdadeira liberdade.
Porém, uma pessoa capaz de realizar qualquer coisa, mais cedo ou mais tarde percebe que a sua liberdade é uma ilusão que precisa ser sacrificada. Então, aceitamos voluntariamente condições que não determinamos — sem medo de perder qualquer coisa, pois sabemos que não temos nada a perder. Desse modo, conquistamos tudo. Tudo que era real em nosso entendimento, em nossas propensões, em nossos gostos e desejos, tudo volta para nós, não só com novas coisas, que antes não poderíamos ter, como também com a sensação de unidade e vontade interior. E, se quisermos resultados reais, devemos aceitar isso não apenas externa, como internamente.
O Caminho para a Autodescoberta
Para não começar em vão, ou não arriscar se enganar, precisamos testar várias vezes a nossa determinação. O mais importante é determinar até que ponto estamos dispostos a ir, o que estamos dispostos a sacrificar. Quando nos confrontamos com essa questão, a resposta mais fácil é “tudo”. O fato, porém, é que ninguém pode sacrificar tudo e que isso nunca pode ser exigido de nós. Devemos definir exatamente o que estamos dispostos a sacrificar, sem fazer barganhas posteriores. Do contrário, estaremos na posição do lobo nesta fábula armênia: “Era uma vez um lobo que havia trucidado muitas ovelhas e deixado muita gente aos prantos”.
Um dia, por um motivo ignorado, ele sentiu dor na consciência e começou a se arrepender do que fizera na vida. Decidiu que iria mudar e que não queria mais comer ovelhas. Após tomar a decisão, procurou um sacerdote e pediu-lhe que organizasse um serviço de ação de graças. O sacerdote começou o serviço, e o lobo ficou em pé na igreja, chorando e orando.
O serviço religioso continuou. Como o lobo havia comido muitas ovelhas do próprio sacerdote, ele orou fervorosamente pela reforma do lobo. De repente, o lobo olhou casualmente pela janela e viu um rebanho de ovelhas indo para o pasto. Começou a se inquietar, mas a prece do sacerdote prosseguia, parecendo que nunca iria acabar.
Por fim, o lobo não se conteve e gritou: “Acabe com isso, padre, ou as ovelhas vão sumir e ficarei sem o jantar!”. Essa fábula descreve muito bem o homem. Estamos dispostos a sacrificar tudo, menos o jantar de hoje. Queremos sempre começar grandiosamente.
Mas o fato é que isso é impossível. É algo além de nossas forças. Precisamos começar com as coisas simples de hoje.
Do livro “Em Busca do Ser”, G. I. Gurdjieff, Ed. Pensamento, pág. 145
Acreditamos que a leitura a seguir também possa contribuir: https://travessiaspa.com.br/a-vontade-o-destino-e-a-providencia/
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